Microcrédito orientado: os fios da rendeira que formam o seu trabalho e sustento

Com empréstimo, mulher de 58 anos conseguiu alavancar o negócio, passando da renda de sobrevivência para uma realidade financeira mais digna

Escrito por Paloma Vargas , paloma.vargas@svm.com.br
Mana rendeira Iguape Ceará Credi
Legenda: Entre os bilros e linhas, Mana trama a sua vida de batalhas, sonhos e conquistas realizadas com auxílio de crédito orientado
Foto: Thiago Gadelha
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"A renda de bilro já me deu muito de comer. Já me ajudou a comprar remédio para os meus filhos, a renda é a minha fonte de renda". Com um sorriso largo e os olhos marejados, Gracimar Dantas da Silva, 58 anos, a Mana, como é conhecida e gosta de ser chamada, é uma daquelas mulheres que não baixou a cabeça para as adversidades da vida e fez do seu trabalho e da sua arte o caminho da sobrevivência.

Desde 2022, a mulher é beneficiária do Ceará Credi, ação do Governo do Estado do Ceará de microcrédito orientado, o qual conheceu com a ajuda da Sala do Empreendedor de Aquiraz. Foi a partir do recurso adquirido pelo programa que ela investiu em produtos para "rechear" a sua banca e comprar matéria-prima para produzir peças e alavancar o negócio próprio. "Agora eu tenho material na minha banca para vender." 

Antes disso, ela ensinava a renda em outros locais e, por não ter tempo de se dedicar, acabava vendendo apenas itens de outras pessoas. "Foi quando me dei conta que estava só trabalhando para os outros e eu mesma não tinha nada".

O primeiro empréstimo de Mana foi no valor de R$ 3 mil.

"As pessoas até riam de mim, mas eu não comprei um bombom com esse dinheiro, comprei só material e peças pequenas de outras rendeiras, como centros de mesa e bandejas, que são os que mais vendiam."
Mana
Rendeira

Em seis meses, ela pagou o empréstimo apenas com o lucro das vendas e já partiu para o segundo. "Teve uma época da minha vida que eu vendia e não conseguia repor, porque precisava comer, mas, com os empréstimos, eu consigo ter giro de produtos e lucro, porque uma peça, às vezes, demora mais de mês para fazer e, enquanto isso, a gente vai vendendo o que tem na banca. Quando eu não tinha nada, vivia dos 10% das vendas dos outros." 

Costurando os sonhos 

Com o segundo empréstimo, que ela continua pagando, Mana comprou mais matéria-prima e, agora, ela já sonha com o que vai fazer quando conseguir a terceira renovação de crédito.

"Com o terceiro, vou comprar uma máquina de costura overloque industrial nova, porque gosto de criar minhas peças e preciso dar um acabamento melhor para os meus produtos." 
Mana
Rendeira

Além disso, a artesã também quer investir na montagem de um ateliê. "Lá vou ter essa minha máquina nova, a reta que já tenho, minhas almofadas e papelões (moldes que possuem os desenhos que devem ser seguidos no trabalho com a renda), para facilitar o meu fazer e a minha criatividade. Se Deus quiser, eu vou conseguir".

Mana rendeira Iguape Ceará Credi
Legenda: Vestida com a sua renda, Mana olha para o futuro com otimismo e acredita que com o microcrédito orientado pode crescer ainda mais profissionalmente
Foto: Thiago Gadelha

As vendas e a renda lhe deram autonomia

Mana lembra que sempre viu o pai trabalhando em comércio: primeiro, em uma venda no Mucuripe, em Fortaleza, e depois, em uma barraca de praia no Iguape. Muito jovem e querendo tentar a vida, ela veio para Fortaleza trabalhar em uma casa de família, com 17 anos, mas logo viu que aquela não era a vida que gostaria.

“O menino que eu cuidava sumiu um brinco da mãe e acabei sendo acusada. Aquilo foi uma faca enfiada no coração. Eu não admiti a situação e mesmo ele dando conta do brinco e devolvendo para a mãe, decidi que ali não ficaria mais e que não dependeria de ninguém para ter o meu sustento. Viveria daquilo que eu conseguisse vender.”

Mana rendeira Iguape Ceará Credi
Legenda: Das rendas em metro, Mana cria peças de vestuário que levam meses para ficarem prontas
Foto: Thiago Gadelha

Mana vendeu artesanato, trabalhou por muito tempo como sacoleira, sempre em busca de autonomia financeira.

Deixando a realidade do abuso

No Iguape, a rendeira casou e teve três filhos (hoje todos adultos). Ela relembra esse período da vida como o mais difícil, já que o companheiro bebia, gastava o dinheiro que ganhava com vícios e ainda tentava agredi-la.

Mana rendeira Iguape Ceará Credi
Legenda: Mana aprendeu a fazer renda apenas olhando sua tia-avó, que era "rendeira de mão cheia"
Foto: Thiago Gadelha

“Foi em um Natal, que passaríamos na casa da minha mãe, que dei um basta naquilo que me matava todos os dias. Esse é um mal que muitas mulheres sofrem, porque tem muitas que têm coragem de dar o pé na bunda, mas tem muitas que não têm. Eu só aguentei enquanto não tinha para onde eu correr.”

Mana lembra que o companheiro gastava também o dinheiro que ela conseguia com o seu trabalho, pedindo que ela acertasse contas que ele fazia em bares. “Isso acontece porque quando a gente gosta, a gente não enxerga. Só saí porque ele tentou me bater.”

Como começou a história com a renda

Os pais de Mana eram naturais do Iguape, ele pescador e ela marisqueira. Por acaso do destino, foram se conhecer, namorar e casar em Fortaleza, onde ficaram vivendo no Mucuripe. Porém, nas férias escolares, era para o Iguape que eles levavam os filhos e foi assim, que com uma tia-avó, que Mana aprendeu o ofício de rendeira.

A menina de 10 anos deixava de brincar na praia para sentar na varanda da casa da mulher que aprendeu a chamar de apenas de vó e ficar olhando o trabalho.

Mana rendeira Iguape Ceará Credi
Legenda: Com os bilros nas mãos, Mana cria o seu presente e garante o seu sustento
Foto: Thiago Gadelha

“Aprendi desmanchando. Sempre que eu chegava lá, ela estava trabalhando duro. Quando via que eu ia mexer nos bilros, não gostava.” 
Mana
Rendeira

Mana revela que até hoje tem muita rendeira que não gosta que ninguém mexa na sua almofada para o trabalho não sair do ritmo. “Mas a vó estava ficando velha, não enxergando direito e errando. Então, quando ela levantava, eu ia lá e desmanchava o que estava errado, sem fazer nenhum barulho. Quando ela se deu conta, viu que eu já sabia algo da lida e resolveu me ensinar.”

Ensino da renda como passaporte para o mundo

O gostar e saber sobre o fazer da renda de bilro já rendeu parcerias e visitas a lugares que Mana até então não imaginava que poderia acontecer. Antes da pandemia, uma jovem paulista que mora no Reino Unido e estuda moda, veio ao Centro de Rendeiras do Iguape por querer unir o artesanato a alta costura. A intenção da jovem era aprender a fazer a renda, e Mana prontamente não só a ensinou como a convidou para ficar hospedada em sua casa, para que ela entendesse tudo o que envolvia o fazer da renda.

Mana rendeira Iguape Ceará Credi
Legenda: Quando não tinha recursos para comprar o papelão que é o molde da renda, Mana usava caixas de sapato e a criatividade para poder trabalhar
Foto: Thiago Gadelha

Com essa parceria, a rendeira cearense já testou muitos fios europeus, já fez diversos trabalhos que participaram de desfiles pelo mundo e lhe renderam ainda mais clientes dispostos a pagar pela sua arte. Além de já ter viajado por diversos estados do Brasil como rendeira, o ofício a levou até Paris. 

“Passei mais de dez anos da minha vida saindo de casa, deixando meus filhos para ensinar e eles terem o que comer. Tenho muito orgulho de ensinar o que eu sei fazer, que é a minha renda e a minha cultura.”

O programa que transformou o empreendedorismo de Mana

O Ceará Credi é uma política de microcrédito produtivo orientado que possui alguns diferenciais, como atingir a um público que os bancos não aceitam como cliente de crédito, como pessoas em situação de vulnerabilidade social, pessoas com deficiência (PCD), mulheres vítimas de violência e egressos do sistema prisional.

Ligado a Secretaria do Trabalho do Ceará e operacionalizado pela Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece), no seu quarto ano de funcionamento, o programa já liberou mais de R$ 168 milhões em crédito, como o da rendeira Mana, para mais de 67 mil micro e pequenos empreendedores cearenses.

Mana rendeira centro de rendeiras Iguape Ceará Credi
Legenda: A banca da rendeira Gracimar Silva, a Mana, no Centro de Rendeiras do Iguape
Foto: Thiago Gadelha

"Nós temos experiências exitosíssimas no Ceará, como o Crediamigo (do Banco do Nordeste), mas o Ceará Credi se propõe a atingir um público ainda mais vulnerável, que está a margem de todas as outras políticas de microcréditos orientados”, explica o secretário do Trabalho do Ceará, Vladyson Viana.

Ele também aponta outros diferenciais como a possibilidade de se dar crédito para quem está iniciando um negócio. “As vias de microcrédito comumente são para empreendimentos já existentes, mas nós não, nós atendemos aquele que tem uma ideia e quer começar.” 

A iniciativa traz a possibilidade de se tomar o crédito para se fazer um investimento, ou seja, não serve apenas para entrada de capital de giro. “Aqui o tomador de crédito pode ser um trabalhador informal, não precisa ter CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas), ou ser MEI (microempreendedor individual), por exemplo”, comenta Viana.

Secretário do Trabalho do Ceará Vladyson Viana
Legenda: Secretário do Trabalho do Ceará, Vladyson Viana, afirma que Ceará Credi atende público vulnerável e ajuda na abertura do negócio
Foto: Arquivo Pessoal

Sobre uma grande preocupação de quem quer tomar crédito, que é ter o nome limpo, o secretário explica que o Ceará Credi tem um olhar diferenciado para o negativado.

“Entendemos que essas pessoas precisam de uma ajuda para sair desta situação. Por isso, esse é um quesito que compõe a análise de crédito, mas não restringe o acesso.”
Vladyson Viana
secretário do Trabalho do Ceará

Alternativas para o trabalho

Viana ressalta que a força de trabalho cearense é formada por cerca de quatro milhões de pessoas. Destas, apenas 1,3 milhão possuem carteira assinada. Por isso, é importante que se tenha alternativas de renda e empregabilidade para quem não acessa o emprego formal, que não é estatutário, ou um grande empresário.

“O nosso esforço é de, em parceria com outros órgãos como as secretarias de Educação, de Desenvolvimento Econômico, o Sebrae, fortalecer uma cultura empreendedora e a desburocratização da formalização através do MEI. Porém, não adianta a gente cuidar de tudo isso se não tiver o crédito para a produção de bens e serviços e o apoio à comercialização.”

Mulheres no foco

O secretário do Trabalho lembra que em 2022, como marco Dia da Mulher, foi lançada em parceria com a Secretaria das Mulheres, liderada pela vice-governadora Jade Romero, uma linha de crédito específica para mulheres.

Mana rendeira Iguape Ceará Crédi
Legenda: A rendeira Mana tem 58 anos e muito orgulho do seu trabalho artesanal
Foto: Thiago Gadelha

“Percebemos, desde a implantação do programa, que a maioria dos tomadores de crédito são mulheres, cerca de 70%, das quais 56% são mulheres chefes de família. Então essa também é uma política que tem um nicho claro que é de criar a autonomia econômica das mulheres”, diz, Viana, lembrando que em 2023 foram emprestados cerca de R$ 30 milhões apenas para este público. 

Ampliação do Ceará Credi passa por regulamentação de agência de fomento

Quando o Ceará Credi nasceu, uma lei complementar criou o programa e o Fundo de Investimento e Microcrédito Produtivo do Estado do Ceará. Vinculado e gerido pela Secretaria do Trabalho é do fundo que sai todo o custeio da iniciativa de crédito, utilizando recursos próprios do Governo do Ceará. Atualmente o fundo tem um patrimônio de R$ 100 milhões reaplicados permanentemente para esse fim.

Segundo o secretário do Trabalho, por serem finitos os recursos do Tesouro Estadual, a sua pasta tem trabalhado para ampliar a oferta de crédito por outros meios. Assim, no ano passado, o Governo do Estado criou a Agência de Fomento do Ceará, que tem como ponto principal a regulação do Banco Central (BC).

O processo está em fase de análise técnica para a autorização e efetivação deste instrumento. Não há prazo para que o BC autorize o início da operacionalização, porém o secretário está otimista e com a expectativa de que a implantação ocorra ainda este ano.

A agência permitirá que o Governo do Estado capte recursos de fundos e bancos, públicos e privados, nacionais e internacionais, para poder ampliar a oferta de crédito, que é a prioridade da cesta de serviços e produtos do novo instrumento.

“Temos boas conversas iniciadas com o BNB (Banco do Nordeste), BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e órgãos internacionais. Então, a nossa expectativa é de que assim que a agência de fomento seja efetiva, possamos alavancar ainda mais essa linha de crédito.”

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