Com ultraprocessados de fora, Reforma Tributária barateia 'leite fake', miojo e lasanha congelada

Projeto de Lei para regulamentar a Reforma Tributária sobre o consumo poupou a indústria dos embutidos e reduziu a alíquota de alguns itens

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Miojo sendo fabricado
Legenda: O 'miojo' terão redução de 60% da alíquota, conforme lei complementar
Foto: Shutterstock

Compostos lácteos (similares do leite em pó, misturas de creme de leite, entre outros), lasanha congelada, macarrão instantâneo. Alimentos que, segundo o Ministério da Saúde, devem ser riscados da lista de compra dos brasileiros, terão redução de 60% das alíquotas dos impostos, conforme prevê o Projeto de Lei para regulamentar a Reforma Tributária sobre o consumo. Isso significa que poderão ficar mais baratos.

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O documento da Reforma Tributária, de mais de 300 páginas, foi enviado ao Congresso no último dia 24 de abril e ainda precisa de maioria absoluta (257 votos dos deputados) para ser aprovado. 

Entenda o que pode mudar

Pelas regras apresentadas, os ultraprocessados escapam do tributo seletivo, com exceção das bebidas açucaradas. Batizada de ‘imposto do pecado’, na teoria, essa cobrança vai aumentar a carga de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. 

No entanto, além de poupar essas indústrias, o projeto corta em 60% as alíquotas dos tributos federais (CBS), estaduais e municipais (IBS) de alguns alimentos modificados. Nos itens 4 e 11 do Anexo VIII da redação, estão com essa vantagem fiscal os seguintes produtos: 

  • Leite fermentado, bebidas e compostos lácteos;
  • Massas alimentícias recheadas (mesmo cozidas ou preparadas de outro modo);
  • Outras massas alimentícias. 

Ou seja, aquelas massas popularmente conhecidas pela metonímia ‘miojo’, lasanhas congeladas e similares de alimentos à base de leite ficarão mais baratos com a diminuição da carga tributária. 

Entre eles, itens que parecem leite em pó, creme de leite, leite condensado, mas, na verdade, são misturas alimentícias, podendo conter ou não substâncias lácteas. A rotulagem e publicidade de alguns desses artigos são, inclusive, direcionadas ao público infantil. 

Para a professora de Direito Tributário e Finanças Públicas da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), Tathiane Piscitelli, há incompatibilidades nesses dois pontos da Reforma Tributária, considerando que alimentos beneficiados com a redução das alíquotas não poderão ser tributados com o imposto seletivo. 

“O governo não quis, por ora, comprar a briga dos ultraprocessados e tributar pelo seletivo, mas outra coisa muito diferente é conceder benefício fiscal”, avalia. 

Isso é um equívoco. Não só por serem produtos que fazem mal à saúde — e não deveriam ter incentivo tributário, pois isso custam aos cofres públicos —, mas porque a previsão de determinados produtos favorecidos com a alíquota reduzida faz com que não possam mais ser tributados pelo imposto seletivo”, completa. 
Tathiane Piscitelli
Professora de Direito Tributário e Finanças Públicas da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV)

Para Piscitelli, a decisão dificulta um diálogo futuro sobre um conjunto de políticas públicas de saúde e fiscal para conscientizar e diminuir o consumo desses alimentos nocivos. “É como se o governo já desde logo estivesse abrindo mão de tributar mais pesadamente esses bens. E, junto com esse benefício, vem uma espécie de renúncia fiscal”, reforça.

Além da recomendação do Ministério da Saúde, entidades ligadas à saúde coletiva defenderam a maior taxação dos ultraprocessados. Embora a demanda não tenha sido atendida, o Projeto de Lei também prevê a Cesta Básica Nacional, com alíquota zero para alimentos considerados essenciais para a população brasileira. 

Por que os ultraprocessados deveriam ser mais taxados?

Segundo a nutricionista Viviane Araújo, a ingestão contínua de ultraprocessados está associada a Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), como obesidade, diabete, hipertensão, doença renal e câncer. “São produtos com alto teor de açúcar, óleos, conservantes, corantes, aromatizantes, adoçantes, sódio, baixo em fibras e valor nutricional”, lista.

De acordo com o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras menores de dois anos, do Ministério da Saúde, os compostos lácteos são alimentos ultraprocessados e não devem ser oferecidos a crianças, além da recomendação de serem evitados por adultos.

No entanto, observa, atualmente, é recorrente o consumo dos embutidos, seja por razão econômica, falta de conhecimento ou pelo estilo de vida contemporâneo.

Conforme a nutricionista, cada macarrão instantâneo contém o dobro do quantitativo de sal recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de 4 gramas por dia. “Essa quantidade é encontrada principalmente nos pacotinhos de sabor que vêm na embalagem do 'miojo'. Além disso, esse produto é pré-frito, o que aumenta sua composição calórica e os malefícios”, esclarece.

Já os compostos similares ao leite, explica Araújo, precisam ter somente 51% de ingredientes lácteos, “podendo o restante ser de qualquer outra coisa, inclusive de açúcar”. Portanto, são prejudiciais à saúde e ao desenvolvimento de crianças por serem pobres em vitaminas e minerais.

Segundo a Araújo, essa combinação de açúcar elevado e poucos nutrientes pode provocar obesidade infantil, diabete, anemia, dores de cabeça, comprometimento do desenvolvimento neurológico e baixa imunidade. 

“Para a população de menor poder aquisitivo, a situação é ainda pior porque o consumo não é uma escolha, mas a única alternativa diante dos altos preços dos alimentos in natura ou pouco processados, os quais deveriam ser a base da nossa alimentação’”, reflete.

Outro ponto, acrescenta, é que essas pessoas enfrentam dificuldade de acesso a tratamentos após o adoecimento.

A questão não é apenas sobre isentar os ultraprocessados do 'imposto do pecado', mas a falta de incentivo à produção de frutas e legumes, principalmente de pequenos produtores. É preciso avaliar a eficácia das políticas de saúde pública para o abastecimento, acesso e a oferta de alimentos saudáveis”, sublinha. 
Viviane Araújo
Nutricionista
  

População em insegurança alimentar não tem escolha 

Frutas em supermercados
Legenda: Frutas e legumes ainda são inacessíveis para parte da população
Foto: Fabiane de Paula SVM

Há dois anos, durante a escalada da inflação, cearenses de menor poder aquisitivo não tinham escolha: era comer o “miojo” ou sucumbir à fome. Apesar do controle dos preços, atualmente, a falta de renda ainda impede parte da população de comprar frutas e verduras.

É o caso da estudante Juliana Lima, de 38 anos.

Nem sempre tenho dinheiro para comprar alimentos saudáveis. Por isso, às vezes são a salsicha, o miojo e o empanado de frango que ajudam sobreviver”, relata. 
Juliana Lima

Juliane mora com o filho de oito anos e o marido em uma casa no bairro Bom Jardim, em Fortaleza. A principal renda vem do trabalho de servente de pedreiro do companheiro. Apesar das dificuldades, quando pode, ela prioriza uma dieta sem ultraprocessados. 

Ela não está sozinha. A economista e coordenadora de projetos do Instituto SOS Periferia, Fabíola Moreira, destaca que muitos cearenses não têm como escolher a refeição e pondera que a discussão dos ultraprocessados deve contemplar o recorte de classe social. 

Lidamos com pessoas que estão procurando comida no lixo. Essa insegurança alimentar grave é a realidade de muitas casas aqui e no Brasil. Então, é triste, mas é o ultraprocessado que mata a fome de muita gente”, aponta.
Fabíola Moreira
A economista e coordenadora de projetos do Instituto SOS Periferia

No Ceará, 1,1 milhão de famílias convivem com a incerteza de ter um prato de comida, totalizando 35,1% dos domicílios cearenses, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

É errado? Sim, erradíssimo, mas infelizmente o brasileiro continua precisando comer muito veneno, incluindo os ultraprocessados. Falar de acesso a legumes e frutas também é discutir sobre agrotóxicos. Não temos uma política de acesso ao alimento de qualidade e seguro”, adverte.
Fabíola Moreira
Economista e coordenadora de projetos do Instituto SOS Periferia

Fabíola observa, contudo, haver como ponto positivo a retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). O órgão consultivo atrelado à Presidência da República foi criado em 1993, pelo então presidente Itamar Franco. Em 1995, foi revogado no governo Fernando Henrique Cardoso.

Já em 2003, foi reorganizado pelo ex-presidente Lula (PT), mas o governo Bolsonaro (PL) extinguiu a instituição em 2019. Em 2023, o Governo Lula 3 retomou o Consea. 

Em relação aos pesticidas agrícolas, o Brasil foi o maior consumidor do mundo, totalizando 505 novos registros do produto, segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Aqui, em 2019, o Ceará foi pioneiro ao proibir a aplicação de agrotóxicos por via aérea, por meio da lei Zé Maria do Tomé (Lei 16.820/2019).

No ano passado, após pressão dos ruralistas, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou a constitucionalidade da norma. A legislação leva o nome do ambientalista de Limoeiro do Norte, no Jaguaribe cearense, que denunciou as práticas do agronegócio no Estado. 

Resumo em tópicos Entenda a Reforma Tributária

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