Tita e a velhice

O que muda em você quando os anos são tantos que o mundo que você conhecia começa a morrer?

Legenda: Francisca Alves de Menezes, a Tita, está prestes a completar 80 anos
Foto: Arquivo pessoal

Conheço Francisca Alves de Menezes, a Tita, há pelo menos 15 anos. É uma mulher de cabelos alvos que traz no rosto as marcas de um tempo bom. Em uma comunidade rural de Várzea Alegre, ela casou, teve filhos e ficou viúva sem perder o gosto pela vida. Atravessou décadas tendo como vizinha três cunhadas com a qual dividia a vida no sítio, o cuidado com as galinhas e a observação de tudo o que vinha do céu - dos aviões que cruzavam as nuvens às aves que traziam presságios.

Mas, prestes a completar 80 anos, notei que ela passou a se despedir de mim como se fosse a última vez. Tem sido assim nos últimos anos, nas três ou quatro vezes que nos encontramos. "Minha filha, vou lhe dar um abraço apertado porque não sei se a gente vai voltar a se ver, né?", ela me disse neste mês de janeiro, enquanto apertava os olhos contra o sol, na calçada de sua casa.

Enquanto eu tentava quebrar aquela ideia de finitude, ela chamou minha atenção. "Aqui já perdemos uma", me disse, referindo-se à cunhada Socorro, que faleceu no ano passado. Era uma vizinha da vida toda. Fiquei pensativa: o que muda em você quando os anos são tantos que o mundo que você conhecia começa a morrer?

Tita tem perdido muita gente nos últimos anos e se despede de mim como se fosse natural que eventualmente não voltemos a nos ver com a minha demora em visitá-la (costumo ir uma vez por ano). Algo me diz que ela ficará muito tempo entre nós, mas não quero perder sua história - tão grande. Teimo em lembrar como a história de seu amor e de seu casamento conta também como ela leva a vida naquele lugar onde - apenas aparentemente - nada acontece.

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A iluminação da cena parecia ter sido produzida artificialmente, mas não foi. Especialmente naquele dia, a lua cheia imitava um quebra-luz. Clareava a estrada de terra batida no tom certo para que os olhos expansivos de Tita encontrassem paixão no sorriso envergonhado de Tim. O amor, na primeira vez que se apresentou a ambos, teve um cheiro forte que tanto empestava as narinas quanto embalava o casal de coragem para assumir o sentimento. 

Naquela noite de 24 de agosto de 1961, um grupo de jovens retornava da festa do padroeiro São Raimundo Nonato, na cidade, quando um gambá cortou a estradinha, a natureza dando um jeito para deixar o casal a sós. “Todos correram com medo desse gambá. Nós dois não. Aí começou o namoro nesse dia”, recorda Tita. Com a privacidade levemente resguardada, Tim segurou a mão da namorada e a conduziu pelas ladeiras do Roçado, conversando.

“O cortejo não era como as coisas de hoje, não tinha beijo. Depois, com os anos, é claro que o namoro ficou diferente. É claro que depois de cinco anos já tinha o beijo, já tinha essa intimidade. Mas, hoje, é uma paixão do momento, o povo não se comporta mais. Nessa época, era muito diferente. Era coisa de amor mesmo”, se derrete ela
.

Com paciência, soube esperar onze anos para enfim ser desposada pelo homem que mais amou na vida, a relação sendo alicerçada na compreensão. “Eu entendia a demora porque ele era dono de casa e morava só com a mãe e as irmãs. Era bonito ele querer esperar as meninas casarem pra poder sair de casa”.

No dia 9 de dezembro de 1972, Tita acordou ansiosa para casar, mas se apressou em viver o começo do dia como todos os outros: varreu terreiro, matou galinha, cozinhou, lavou louça. Pela manhã, ainda encontrou o noivo pelos corredores espremidos do mercado da cidade, os quereres de ambos tão certos em findar a solteirice.

“Eu amanheci o dia e fui cuidar da vida, fui à luta. Não tinha esse negócio de ajeitar cabelo e ir se preparar em salão. Esse dia foi grande, mas, contando assim, foi a mesma coisa do outro dia atrás. O tempo que eu tive pra me arrumar foi o de trocar uma roupa pelo vestido”, lembra.

Na hora que antecedeu a um dos maiores momentos da vida dela, tomou um banho demorado e se perfumou com uma colônia, que, se não lhe falha a memória, chamava Promésia. Tita usou um vestido branco de Piquet cujos enfeites de bordados delicados iam até a altura do joelho, os cabelos soltos na altura dos ombros.

Estava pronta para ir à igreja da cidade, quando chegou a prima Josélia reclamando da falta da maquiagem. “Ela dizia que podia dar uma emoçãozinha, e o sangue fugir do rosto. Aí era bom pra disfarçar. Você não sabe que tem isso? Dá uma emoção, aí o sangue dos lábios foge. Mas eu não tava com medo de nada não. Eu queria era casar”, explica Tita, que, de tão satisfeita, nem cogitou discordar da ideia da prima. Passou o pó Cacheme Bouquet, o melhor da época, e um batom que não lembra mais a cor. Só então ficou pronta para o enlace.

A superstição de que o noivo só poderia ver a noiva na hora do casamento foi ignorada.

Sem condições financeiras para organizar um casamento mais pomposo e cheio de carros e regalias, os noivos fizeram o traslado do sítio à igreja de Várzea Alegre no mesmo veículo. Ainda dividiram os assentos com os convidados da comunidade. A única recomendação popular que conseguiram seguir foi a de entrar na igreja com o pé direito para garantir a sorte na nova vida compartilhada. Entraram.

Por volta das seis da tarde, Tita atravessava o tapete vermelho lentamente e tentava conter o nervosismo que insistia em aparecer. A marcha nupcial embalava a cena, a moça vivendo a realidade com mais gosto que o próprio sonho.

No altar, Tim a esperava com elegância. Vestia uma calça social cinza e uma camisa de botão esverdeada que a esposa ainda guarda, embora não mais consiga definir a cor da vestimenta recolorida pelos anos. O casal foi abençoado pelo padre José Mota Mendes, em nome de São Raimundo, que, mais do que o padroeiro da cidade, imperava como um secreto padrinho de casamento. 

Para ela, o casamento era também uma forma de conquistar a liberdade. Donos das próprias vidas, Tim e Tita agora se preparavam para fincar suas próprias raízes no mundo. Ela teve filhos, mas estudou pouco. Naqueles tempos, no campo, as mulheres aprendiam sílabas soltas para que pudessem pelo menos escrever algumas palavras. O que leem com fluência, hoje, já idosas, são as frases ensinadas pela vida. O conhecimento que adquiriram veio do mundo e do tempo e se revela tão subjetivo quanto eles. E é ouro.