Tia Simoa e Maria Tomásia – A memória das abolicionistas cearenses no março de 2024

Entre o 25 de Março, Data Magna, e o 31 de Março, aniversário de 60 do Golpe Civil-Militar, as histórias das mulheres cearenses na disputa entre esquecer e lembrar

Legenda: Preta Tia Simoa, mulher preta cearense que contribuiu para abolição da escravidão no Ceará
Foto: Reprodução/Patty Storms
Ao encerrar o Março das Mulheres em meio às memórias da Data Magna do Ceará – dia que marca o fim da escravidão na então província em 1884, quatro anos antes da lei nacional –, resgato a memória de dois modelos quase arquetípicos do feminino cearense, dois símbolos da nossa gente em luta contra a opressão.

O Ceará se tornou um espaço privilegiado para estudar as questões antiescravagistas: tivemos a primeira vila a abolir legalmente o sistema escravocrata, Acarape, atual Redenção, em 1º de janeiro de 1883; depois tivemos a primeira capital de província a promover a libertação, Fortaleza, em 24 de maio do mesmo ano; e, por fim, fizemos a abolição completa em toda a unidade provincial, primeira a libertar os escravos. O Ceará virava assim, no título dado pelo abolicionista José do Patrocínio, a “Terra da Luz”

E foi a ação das mulheres libertadoras cearenses que deu à luz a esse rebento libertário, em especial as personagens que escolhemos como representativas das lutas sociais do período: Preta Tia Simoa e Maria Tomásia Figueira Lima. Cada uma em seu respectivo campo social liderou movimentos de vanguarda tensionando o tecido social aos limites que seu tempo permitia. 

Figuras como Simoa e Tomásia; mesmo ativas, fortes e significativas em suas gerações; são silenciadas, abandonadas por nossa memória coletiva oficial e nossas histórias ensinadas, resistindo apenas nas narrativas marginais e nas memórias paralelas.

Por isso, lembrar o 25 de março é lembrar os processos de luta que o construíram e as mãos que o teceram, antes e depois da data de assinatura da letra da lei.

Tomásia e Simoa: Lutas entre Salões e Jangadas

Negros, trabalhadores pobres das periferias, não costumam estar entre os líderes tradicionais da historiografia nacional. Mulheres são exceções ainda mais intensas da historiografia. Uma exceção do silenciamento é o jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, o hoje famoso “Dragão do Mar” - mas o cearense não organizou sozinho a paralisação do mercado escravista no litoral e do porto de Fortaleza em janeiro de 1881, teve muitos companheiros e companheiras. Preta Tia Simoa fui uma das principais.

Em 1881, junto ao jangadeiro José Luiz Napoleão, seu companheiro, organizou a greve e combateu ao lado do Dragão do Mar. Esteve na mobilização da gente do mar da Praia do Peixe ao velho Farol, o que compreenderia hoje toda a Beira Mar de Fortaleza, do Poço da Draga à ponta do Mucuripe. A Greve dos Jangadeiros foi fundamental para dar visibilidade ao protagonismo negro na ação antiescravagista no Ceará e no Brasil. 

Simoa foi quase que completamente invisibilizada pela História, não há maiores registros sobre seu nome completo ou local oficial de nascimento. Preta forra, a liberta se consolidou como uma liderança social, moral e religiosa da comunidade negra pescadora cearense. Os apelidos de “Preta" e “Tia" reconhecem essa liderança e o respeito adquirido em meio a uma população que até hoje sofre com a invisibilidade já que a tradição diz que no Ceará não houve ou poucos foram os negros e escravos nestas terras. 

A “Tia” é pouco conhecida diante da importância da luta pela liberdade do povo negro cearense no movimento negro navegante. Seu protagonismo e atuação ativa permanece oculta nas aulas e marcos da historiografia oficial, faltam memoriais e símbolos de sua existência e de seus companheiros e companheiras. Preta Tia Simoa resiste nas memórias da praia e dos barqueiros. O mar não esqueceu o que os livros tentaram esconder.

Maria Tomásia Figueira Lima está em outro universo, é outro extrato da sociedade, outro espaço de visibilidade e atuação, não se podem comparar as duas personagens, suas ações não disputam importância e tamanho, na verdade ela se complementam em um quadro extremamente complexo de lutas, são fronts diferentes de uma guerra de muitas perspectivas. Por isso as trago em conjunto, em somatório de forças.

Maria Tomásia foi a primeira presidente da “Sociedade das Cearenses Libertadoras”, que em 1882 uniu 22 mulheres, a maioria de famílias tradicionais e abastadas do interior cearense, para influenciar políticos em prol da abolição. Ela nasceu em Sobral em 1826, casou-se aos 15 anos, teve oito filhos até ficar viúva. Em 1859 casou novamente com o abolicionista Francisco de Paula de Oliveira Lima e teve mais dois filhos. 

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Ao se mudar para Fortaleza, em 1877, passou a liderar campanhas abolicionistas junto a figuras influentes da política estadual. Na cerimônia de instalação da Sociedade das Libertadoras, em 06 de janeiro de 1883 trouxe o líder José do Patrocínio ao Ceará. Conseguiu o apoio financeiro até do Imperador Pedro II para a compra de alforrias. A entidade comprava liberdades e lutava pela libertação jurídica de aprisionados ilegalmente.

As mulheres do grupo atuavam como jornalistas, poetisas, cronistas e articulistas publicando em periódicos abolicionistas, clamando contra o escravismo e o silenciamento feminino e negro. No dia 25 de março de 1884, Maria Tomásia e as cearenses libertadoras estavam na Assembleia Legislativa da Província, no ato oficial de libertação dos escravizados do Ceará. As representantes da entidade estão representadas nas imagens deste simbólico momento, discursaram entre os presentes, assumiram o púlpito e se destacaram no evento. 

Preta Simoa e seus jangadeiros não estavam nesta festa política, não estão nos quadros da Data Magna, mas, sua luta é tão significativa quanto à dos políticos que assinaram a lei de nossa data maior e acredito que tenham comemorado à beira mar a vitória contra leis injustas que por séculos naturalizaram um mal inominável: a objetificação violenta da vida e a coisificação embrutecedora e mercantil do outro. 

Mesmo que essa ação legislativa não tenha acabado - e não estejamos nem perto de acabar – com o mal do racismo e do preconceito, que ainda se espraia por nossa sociedade, repercutindo em todas as direções, mas, ao menos, sem a proteção e defesa de uma justiça a legitimar e justificar, os que defendem a opressão não podem fazer isso da forma aberta e clara como desejam.

A importância da abolição no Ceará não é numérica, não se trata que quantos escravos foram libertos, havendo um homem ou mulher cativo vale a luta. Trata-se de uma questão humanitária, pedagógica, civilizatória de se estabelecer a linha do inaceitável e Tia Simoa e Maria Tomásia deixam claro em suas biografias esse papel educador. 

Simoa, foi escrava, Tomásia, aristocrata, ambas as mulheres tiveram que lidar com as limitações do feminino do século 19 em seus respectivos universos, elas romperam os estereótipos e foram protagonistas de seus momentos históricos. No passado seu papel teve peso e relevância, no presente suas figuras precisam ser dimensionadas, conhecidas, problematizadas, discutidas. A Data Magna do Ceará precisa ser uma data de memória crítica sobre a construção de uma liberdade incompleta e ainda carente de muitas complementações. É um dia de luta pelo lembrar.

No dia 31 de março de 1964, foi dado o golpe civil-militar que inaugurou o regime ditatorial de 64-85 no Brasil, cujo líder principal foi o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Em sua homenagem, se ergueu o mausoléu que anexa o Palácio do Governo do Estado do Ceará, o Palácio da Abolição. O atual governo anunciou substituir a homenagem do presidente-ditador por um espaço de memória dos líderes abolicionistas que marcaram a construção da liberdade no Ceará.

Preta Simoa e Maria Tomásia merecem seus espaços e aqui as suas figuras concentram o nome de inúmeras outras que podem figurar as paredes e salas do futuro espaço de memória.