Leprosário do Ceará e a história do medo na humanidade

O Centro de Convivência Antônio Diogo há 96 anos passou a atender pacientes no Estado

Legenda: A história da hanseníase é a história de como a humanidade lida com a dor, a morte e o medo do desconhecido, uma narrativa milenar de dor e segregação
Foto: Fabiane de Paula

A história da hanseníase é a história de como a humanidade lida com a dor, a morte e o medo do desconhecido, uma narrativa milenar de dor e segregação. Dia 26 de janeiro foi ‘Dia Mundial Contra a Hanseníase’ e, no Brasil, o janeiro roxo alertou sobre o combate à doença, mas, historicamente, essa questão é muito maior que a doença em si, trata de fantasmas e medos cravados na mente e na pele da humanidade. No Ceará, tem uma materialização: o Centro de Convivência Antônio Diogo, o antigo leprosário que há 96 anos passou a atender pacientes do Ceará e proximidades.

Da antiguidade bíblica à medievalidade monástica, da Índia ao Império Britânico os governos isolaram e repudiaram quem trazia na pele as marcas físicas que viravam estigmas sociais. Independente do período, país ou cultura, a lógica de evitar a doença era evitar o doente. Estes espaços de reclusão fazem parte da memória sanitária e devem nos levar a reflexão sobre nossa relação entre a saúde e a doença.

A construção do isolamento e a sociabilidade na reclusão

A Professora Zilda Maria Lima, da Universidade Estadual do Ceará, é a principal especialista no tema e conta como a construção destes espaços reflete a sociedade ocidental e como ela se dá para além do espectro médico-sanitário.

Em 1873 o cientista Armauer Hansen desvendou como a lepra era causada pela bactéria Mycobacterium leprae, o bacilo de Hansen, nascia o termo hanseníase. É em torno desse período, 1867, que se relata o primeiro caso no Ceará.

O isolamento de doentes na capital cearense começou em cabanas de palha no Arraial Moura Brasil e no Morro do Croatá, entre o que hoje é a Santa Casa de Misericórdia e o Instituto Médico Legal, na Avenida Leste-Oeste da Capital.

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Por iniciativa da Liga das Senhoras Católicas, “caridosas” matronas que, apoiadas por seus civilizatórios senhores, se conquistou um espaço distante e isolado, na comunidade de Canafístula, Redenção, a 55 quilômetros de Fortaleza.

A inauguração do espaço, em 1928, atendia a lógica sanitária positivista do tratamento ao que era antissocial. Nascido como uma colônia agrícola para órfãos, o chamado “Buraco de Santo Antônio” possuía instalações físicas extremamente precárias, sem luz e sem um sistema de água adequado. O médico ia uma vez por semana, faltava medicação.

Os registros de abandono familiar e falha do estado são diversos, até mesmo de escassez de alimentos e fugas de colonos devido às péssimas condições na comunidade.

Como resistência surgiu uma organização interna, um microcosmos no isolamento que buscava uma autossuficiência que garantisse a existência da comunidade. Os colonos elegiam um ‘prefeito’ que negociava com a administração oficial das freiras capuchinhas o funcionamento do espaço. Tinha hospital, delegacia, igreja, cemitério, espaço de lazer, pavilhões, enfim, uma vida social que buscava se constituir à margem do mundo externo.

Em 1962 os doentes de hanseníase, tiveram, alegadamente, o direito a receber alta e retornar às suas casas. Nos anos 70 as internações se encerraram. Muitos dos pacientes preferiram não voltar ao mundo externo, alguns continuam no Antônio Diogo.

Legenda: Em 1962 os doentes de hanseníase, tiveram, alegadamente, o direito a receber alta e retornar às suas casas
Foto: Fabiane de Paula

Memorial Leprosaria Canafístula

Hoje existe o Centro de Convivência Antônio Diogo, que ainda necessidade de atenção e auxílio social, e o Memorial Leprosaria Canafístula. Há um esforço em preservar a história e memória da hanseníase no estado, entende-se que espaços e prédios guardam memórias, registram práticas e tensões e que os espaços de reclusão e isolamento são, tristemente, privilegiados nessa questão por demarcar o que as sociedades de uma época definiram como aceitável ou não.

Por isso o patrimônio material da antiga Colônia Antônio Diogo guarda grande importância ao manter toda a carga do vivido naqueles espaços, suas histórias não podem desaparecer, essas vidas e pessoas precisam ser honradas, o espaço deve servir como alerta, um memorial de cada história que entre 1928 e 1973 foi isolada compulsoriamente no hospital-colônia pela maior e mais pandêmica das doenças: a ignorância.  

Para saber mais: “O GRANDE POLVO DE MIL TENTÁCULOS”: A LEPRA EM FORTALEZA (1920/1942). Zilda Maria Menezes Lima.