Nem ciência nem pseudociência: dogmáticos

Se a afirmação “não tem comprovação científica” parece ser algo bastante ofensivo, isso denuncia o dogmatismo científico de nossos tempos.

Legenda: Em “nome da ciência” muitas teorias e práticas nefastas, que eram ditas “científicas”, já foram propagadas
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Nos últimos dias, em ocasião do lançamento de um livro sobre “pseudociências”, o debate sobre o que é ou não científico em práticas de saúde, notadamente no campo da saúde mental, tem ganhado repercussão.

Há várias ponderações possíveis sobre essa discussão, entretanto, confesso que o que mais me chama atenção é como apontar que algo não tem comprovação científica parece ser lido na atualidade como uma grande ofensa.

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As acusações incisivas de algumas práticas como pseudociências, assim como as defesas acaloradas dessas práticas para estas serem reconhecidas como ciência, apontam que ambos os lados parecem colocar a ciência atual para além do bem e do mal, inserem a ciência em um lugar irrefutável, como de um dogma.

Os envolvidos na discussão parecem esquecer que, ao longo da história, ter a alcunha de “científico” não torna uma prática algo necessariamente irrefutável ou mesmo boa.

Vale lembrar que em “nome da ciência” muitas teorias e práticas nefastas, que eram ditas “científicas”, já foram propagadas, como a eugenia de Cesare Lombroso (que criou a teoria do “criminoso nato”, defendendo que a propensão a cometer crimes era um traço hereditário e poderia ser identificada a partir de características anatômicas), o darwinismo social de Herbert Spencer (que deu base teórica para as atrocidades do holocausto ao defender que existiam seres humanos “inferiores” e “superiores”); e na prática da lobotomia de Walter Freeman e Egas Moniz (que chegou a ganhar um Prêmio Nobel por isso), que resultou em incontáveis pessoas definitivamente lesionadas – inclusive Rosemary Kennedy, irmã do ex-presidente americano.

Por outro lado, é óbvio que a difusão de práticas que prometem curas milagrosas por meio de afirmações falsas, vagas ou exageradas, e que se dizem “científicas”, é um enorme problema de saúde pública em diversos países, notadamente por fomentar a falta de confiabilidade em tratamentos médicos respaldados, testados e comprovados por uma larga base metodológica e empírica.

De todo modo, se a afirmação “não tem comprovação científica” parece ser algo bastante ofensivo, isso denuncia o dogmatismo científico de nossos tempos. As pessoas parecem esquecer o que o filósofo Karl Popper nos ensina: que uma das características da ciência é ser falseável – ou seja, pode ser refutada por uma teoria mais moderna.

Em outras palavras, o “ser científico” é algo mutável com o tempo. Acreditar na ciência é, sobretudo, festejar suas próprias limitações e contradições. Ser científico é, portanto, ser antidogmático por natureza e, infelizmente, o dogmatismo parece estar presente em ambos os lados dessa discussão.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora