Da indignação ao banal: como nos acostumamos com a desgraça

O fato é que a propaganda deu slogan a uma sociedade que amou aplicar um modelo de desrespeito ao próximo

Foto: SVM

Na última semana, recebi um convite bastante inesperado de um amigo de longa data com quem estudei na Universidade de Fortaleza em meados de 2003. Duas longas décadas se passaram, mas a forma com a qual as palavras do amigo Reginaldo Vasconcelos, atual presidente da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, me tocaram naquela época fez com que laços se criassem de tal forma que, na última terça (4), sentei-me à mesa de honra daquela Academia ao lado dos grandes nomes de nossa literatura e jornalismo.  

O convite que recebi também foi feito para o ex-governador Lúcio Alcântara e para o médico cardiologista Lineu Jucá. Este fez uma apresentação bastante preocupante sobre a situação das mortes entre motociclistas no trânsito e, ao mesmo tempo, trouxe para a mesa a discussão sobre a ausência de indignação de nossa sociedade com esta pandêmica situação social. 

As motos e as mortes 

Não vou me ater a analisar as questões técnicas que levam aos números que citarei a seguir. O fato é que esses números impactam e não existe nenhum indício de que o uso de motos deixará de crescer. Com a questão econômica assolando a juventude, a decisão de não ter um carro para ter uma moto só cresce e foi constatada no Censo 2022, cujos números começaram a surgir em matérias de jornais nas últimas semanas. 
 
Segundo o Ministério da Saúde, foram 32,3 mil mortes por acidentes de trânsito em 2021. Esse número já foi até maior. Em 1997, último ano antes da mudança para o atual Código Brasileiro de Trânsito, a quantidade de mortes era de 35,6 mil. Aqui, temos um ótimo indício: a lei mais rígida, com métodos de liberação de habilitação mais bem regrados, realmente trouxe algum benefício. Porém, o número de mortes ainda é altíssimo. 
 
Quando avaliamos os números apenas relacionados a acidentes com motociclistas, a estatística muda para pior. O crescimento da frota de motos, entre 1997 e 2022, foi de 983%, já o de mortes teve um crescimento brutal de 977%. Temos uma juventude começando a vida sobre 2 rodas trabalhando em serviços de delivery, como opção devido ao preço elevado de carros e combustíveis ou por conta de um transporte público que não atende à demanda de forma satisfatória. 
 
De tudo, o que mais me impressiona é a baixa atividade social e publicitária para ajudar a diminuir essa estatística tão absurda. Não vou aqui fazer placar de quem mata mais, unindo os dados tristes do cenário do trânsito com doenças. A questão é simples. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2020, 33.497 pessoas morreram em sinistros de trânsito. Do total de mortes, 12.011 estavam em motocicletas.  
 

O que faz o país se calar diante de tal desgraça como se fosse normal viver em um trânsito assim? 
 
 

Como nos indignamos? 

  
A indignação é um fenômeno complexo que pode ser desencadeado por diferentes gatilhos filosóficos e psicológicos. Vários especialistas e estudiosos contribuíram com ideias relevantes nessa área.  
  
Do ponto de vista filosófico, a injustiça é um dos principais gatilhos para a indignação. Filósofos como John Rawls, com sua teoria da justiça como equidade, ou Martha Nussbaum, com sua abordagem sobre as capacidades humanas básicas, discutem a importância da justiça e as razões para se indignar diante de violações desse princípio fundamental. 
  
No campo da psicologia, a indignação pode ser explicada por meio de diferentes perspectivas. O psicólogo Albert Bandura, por exemplo, desenvolveu a teoria da aprendizagem social, que aborda como as pessoas podem se indignar ao presenciar comportamentos injustos ou imorais, especialmente quando são cometidos por figuras de autoridade. 
  
Outro importante nome é o do psicólogo Stanley Milgram, conhecido por seu experimento sobre obediência à autoridade. Seus estudos mostraram como a pressão social e a submissão à autoridade podem criar um sentimento de indignação quando nos deparamos com situações em que pessoas são prejudicadas ou maltratadas. 
  
Além disso, o psicólogo social Philip Zimbardo investigou a influência das circunstâncias na conduta humana. Seu notório experimento, a "Prisão de Stanford", revelou como a indignação pode surgir quando os indivíduos são colocados em papéis de poder ou submissão, levando a abusos e injustiças.

Como banalizamos?

Do ponto de vista psicológico, a banalização pode estar relacionada ao fenômeno conhecido como "habituação". Esse processo ocorre quando nos acostumamos com algo que antes nos despertava interesse ou surpresa e passamos a considerá-lo como algo comum ou trivial. O psicólogo Daniel Gilbert, em seu livro Stumbling on Happiness, explora como a nossa tendência à habituação nos impede de valorizar plenamente as coisas que possuímos, nos levando à banalização de experiências e bens materiais.   

Além disso, a banalização pode ser entendida à luz de perspectivas filosóficas. O filósofo alemão Martin Heidegger argumentou que a banalização surge quando nos tornamos alienados das coisas e do mundo ao nosso redor. Ele destacou a importância de uma atitude de abertura e contemplação para evitar a banalização em vez de nos entregarmos a uma mentalidade de consumo superficial e desinteressada. 
 
Outro pensador relevante é o filósofo francês Jean Baudrillard, que discutiu a sociedade contemporânea em termos de "simulacros". Segundo ele, vivemos em um mundo onde a realidade é constantemente substituída por representações e imagens que perdem seu significado original. Essa substituição constante leva à banalização da experiência humana, onde nada é mais do que uma cópia superficial e vazia. 
 
Em resumo, a banalização na sociedade resulta da habituação psicológica, alienação filosófica e substituição constante da realidade por simulacros. Esses processos podem levar a uma perda de valor e apreciação das coisas, tornando-as banais em nossas vidas. É fundamental refletirmos sobre essas questões para resgatarmos um senso de significado e autenticidade em nossa relação com o mundo ao nosso redor. 
 

Onde está o cidadão?

Citei a questão das mortes relacionadas ao uso de motos como algo que se tornou banal, pois o número tem crescido assustadoramente e sequer estamos discutindo o assunto enquanto sociedade.  

 

A ausência de espírito de comunidade é tão natural que o brasileiro ficou surpreso quando, na Copa do Mundo de 2014, os japoneses limparam os estádios antes de irem embora dos jogos.  A nossa cultura - com elementos monárquicos entranhados, onde sempre deve existir alguém que faça o trabalho subalterno e, por isso, "não preciso fazer o básico quando paguei por alguma coisa" - parece que nos desobriga de sermos simplesmente cidadãos.  

 
Outro elemento de nossa cultura que destrói a empatia básica social é a tal da Lei de Gerson, a partir da qual devemos tirar vantagem de tudo e de todos ainda que isso nos faça virar verdadeiros “picaretas”. E aqui nasce a provocação de hoje.  
 
Para quem não sabe, a Lei de Gerson nasceu de um comercial de TV da década de 1970. O meio-campista da Seleção Brasileira, Gerson, o canhotinha de ouro, estrelava o filme da marca de cigarros Vila Rica, veiculado em 1976. Em seu texto final, o ex-atleta dizia: “Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve você também!”. E assim nascia uma desgraça que já morava em nossa sociedade, mas que foi empoderada, engatilhada como os psicólogos citados falaram. 
 
O fato é que a propaganda deu slogan a uma sociedade que amou aplicar um modelo de desrespeito ao próximo. Eis um país que é, em sua esmagadora quantidade, cristão e, ao mesmo tempo, não apoiador do sentimento de amor ao próximo. 
 
E o Gerson? Bom, o canhotinha não sabia que o comercial criaria essa “lei” com seu nome. Ele, que na verdade é um cidadão que não passa ninguém para trás, virou uma espécie de vítima. Sorte que ele é um cara tão boa praça que não ficou com esse estigma para sua imagem. Porém, o nome da “lei social” até hoje empodera um hábito danoso. 

Crie seu Cannes e ajude a melhorar o mundo  

 

A questão das motos e do comercial de cigarro nos levam à responsabilidade social do publicitário. Este, conhecido como o que deve divulgar marcas que façam o consumidor querer comprar, na verdade é formado profissionalmente como comunicador social. Também deveria caber ao mesmo o trabalho de usar a sua capacidade técnica e criativa para apoiar a melhoria da sociedade.  
 
Marcas no mundo moderno são queridas não apenas por serem bonitinhas e usarem bichinhos e criancinhas. Elas também precisam praticar atos reais de apoio a um mundo melhor. E abraçar causas se faz necessário de verdade. Quando listamos os vencedores do principal prêmio da propaganda no mundo, o Festival de Cannes, podemos constatar que a narrativa social tem crescido de forma avassaladora na lista do agraciados. 
 
Quando vejo a questão dos acidentes de moto, eu me pergunto onde estão as mentes de marketing das marcas fabricantes de motocicletas, que assistem a seus clientes morrendo diariamente e não assumem um compromisso social de apoiar. “Aaaah, mas cabe ao governo fiscalizar e tornar a legislação mais rígida”. A culpa sempre é apenas do poder público?  
 

A verdade é que educar é uma função de todos. E já passou da hora das marcas assumirem parte de suas mazelas sociais, não como espectadores, mas como participantes de uma solução. Por acaso é uma tendência do marketing moderno.

 
A propaganda da Vila Rica criou essa mazela comportamental. Essa mesma forca também constrói. Nossa mente perdeu a noção de indignação e banalizou a morte em muitos âmbitos. Cabe ao elemento mais midiático, rápido e criativo da comunicação iniciar seu papel fundamental de formação, ajudando a ensinar também que ajudar o próximo é essencial para a melhora da sociedade e a sobrevivência, inclusive, do seu mercado consumidor.