O Ceará pode ficar sem Hidrogênio Verde no mercado interno mesmo sendo produtor? Entenda os riscos

Ambientalista alerta para a possibilidade de uma produção voltada para substituir os combustíveis fósseis em outros países, mas arriscando atrasar a transição energética local

Legenda: Ceará tem pelo menos 35 memorandos assinados para a produção de H₂V
Foto: Kid Jr / SVM

Dezenas de memorandos e de promessas de progresso. O itinerário para a chegada do Hidrogênio Verde (H₂V) no Ceará começa pavimentado pelas expectativas, mas marcado por incertezas, sobretudo em relação à concretude de todos os projetos e quais os impactos para a população cearense — e não apenas para o mercado. 

Para o ambientalista e professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alexandre Araújo, é necessária uma análise crítica sobre os movimentos em torno da produção local desse combustível, cujos esforços estariam voltados para a transição energética de outros países. 

No Ceará, as usinas de H₂V ficarão na Zona de Processamento de Exportação do Ceará (ZPE), área de livre comércio com o Exterior, onde são instalados distritos industriais beneficiados com concessões tributárias e liberdade cambial. 

“É importante lembrar que o Hidrogênio Verde não é uma fonte de energia, mas um vetor, um intermediário, o qual armazena a energia gerada na fonte (no caso, as renováveis) e leva ao uso final”, explica o ambientalista. 

“O risco, portanto, é que, em vez de nos beneficiarmos dessa energia diretamente na rede, sendo usada para atender demandas locais como a descarbonização do transporte, ela seja exportada como hidrogênio para ‘limpar’ a matriz energética de outros países, principalmente na Europa”.
Alexandre Araújo
Ambientalista e professor da Universidade Estadual do Ceará

Conforme Araújo, tal cenário pode provocar uma produção prioritária para substituir os combustíveis fósseis em outros países, arriscando atrasar a transição energética local.

A questão levantada não é sobre deixar de abastecer o mercado internacional, mas discutir o aproveitamento da vocação natural do Ceará também para benefício próprio e como evitar o agravamento das desigualdades, já que o aquecimento do planeta tem efeitos dramáticos para a população vulnerável.

Para se ter ideia, segundo relatório do Banco Mundial, os choques climáticos poderão empurrar de 800 mil a 3 milhões de brasileiros para a pobreza extrema, em 2030.

Para resolver o problema do foco na exportação, o ambientalista sugere a imposição de condicionantes às empresas interessadas em fabricar o H₂V para garantir parte da produção para o desenvolvimento regional.

Araújo enfatiza, ainda, que usinas eólicas (essenciais para a fabricação do Hidrogênio Verde) também têm um custo socioambiental, como desequilíbrio ecossistêmico e impactos negativos a territórios e populações.

Nesse contexto, o Ceará ficaria apenas com os ônus dessa indústria, a qual teria o poder de provocar injustiças em relação ao uso dos bens naturais se não houver um mecanismo para equilibrar o interesse privado na exploração do setor energético. 

A coluna solicitou ao governo o posicionamento em relação à crítica e questionou se há planos de elaborar condições para as companhias a se instalarem na ZPE Ceará.

Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento (SDE) comentou sobre o potencial do Brasil e disse haver “abundância energética”. No entanto, a pasta não respondeu especificamente às indagações da reportagem (leia nota na íntegra no fim deste texto).  

Ceará terá capacidade de atender dois mercados, mas requer medidas estruturantes, diz especialista

O pesquisador da FGV Energia, Vinícius Botelho, avalia que, inicialmente, a principal motivação para a produção do Hidrogênio Verde, no Brasil, se deu a partir da demanda internacional, com planos robustos e memorandos de entendimentos. 

“Essa primeira escala tem perspectiva maior de atender ao mercado externo, mas identificamos por parte das indústrias de difícil descarbonização, como siderurgia, cimenteira, mineração, fertilizantes e refino, que iniciativas para a descarbonização local estariam em pauta e passam inclusive a impulsionar novos projetos”, pondera. 

O pesquisador aponta ser necessária uma política voltada para a neoindustrialização e medidas estruturantes para o mercado interno se desenvolver. Para ele, há capacidade de suprir ambas as demandas, mas é preciso gerar condições para os investidores nacionais.

“Atualmente, o custo de produção do hidrogênio cinza varia de 0,8 a 3 US$ por kg, enquanto o do Hidrogênio Verde, no Brasil, está em torno de 4,5 a 6 US$ por kg, podendo ser mais baixos a depender da otimização da produção e da criação de políticas de incentivos. Isso tem impedido, juntamente com a falta de um arcabouço legal, o fechamento de contratos e a tomada de decisão de investimento por parte dos produtores”. 
Vinícius Botelho
Pesquisador da FGV Energia
 

Na análise do especialista, as primeiras plantas de Hidrogênio Verde se tornarão realidade ainda nesta década, entre 2026 e 2030, abastecendo tanto o mercado interno quanto o externo, a depender da maturidade e percepção de risco sobre adquirir o H₂V mais caro.

Conforme Botelho, no entanto, as condicionantes para retenção de parte do gás produzido poderiam ser um entrave para o crescimento econômico, considerando que, para ele, as medidas estruturantes proporcionariam um ajuste natural.

São medidas necessárias para impulsionar o mercado local, segundo o especialista:

  • Aprovação do marco regulatório do H₂V;
  • Políticas de incentivos à neoindustrialização;
  • Linhas de financiamentos diferenciadas para a indústria de H2V e o mercado de carbono;
  • Infraestrutura para o escoamento da matéria-prima;
  • Expansão da geração de energia para atender ao mercado. 

Atualmente no Brasil, estão em tramitação três projetos de lei (PL) relacionados ao marco regulatório e o desenvolvimento da indústria do Hidrogênio Verde. São eles: 2308/2023, 5751/2023 e 5816/2023.

Veja posicionamento completo do Governo do Ceará

A coluna fez os seguintes questionamentos ao governo do Ceará: "um especialista aponta o risco de exportamos o H₂V e ficarmos sem, contribuindo com a descarbonização da economia em outros países, mas ficando atrasados nesse aspecto. Como o governo se posiciona sobre essa análise? O governo pretende colocar condicionantes para parte da produção ficar aqui?”. 

Em respostas às indagações, a SDE enviou a nota abaixo.

“A produção de hidrogênio verde representa um setor que agrega valor e atrai uma extensa cadeia produtiva. O Governo do Ceará visa incentivar a produção do hidrogênio verde e também de produtos como o aço verde, o cimento verde e outros. Além disso, também objetiva contribuir para o desenvolvimento de novas tecnologias em energias renováveis e hidrogênio verde.

O Brasil conta com um excedente de energias renováveis 17 vezes superior às suas necessidades até 2050. Nesse contexto, há um potencial eólico e solar equivalente a cerca de 150 vezes a atual capacidade instalada de produção de energia elétrica no Brasil. Portanto, temos abundância energética. 

Segundo dados oficiais, o Brasil tem capacidade para suprir mais de 50% da demanda mundial por hidrogênio verde até 2050. No entanto, estimativas conservadoras indicam que o Brasil poderá contribuir com cerca de 5% desse mercado em ascensão, promovendo desenvolvimento econômico, social e atraindo investimentos.

Salmito Filho
Secretário do Desenvolvimento Econômico do Ceará”