História de Bateau Mouche, barco feito no CE e que naufragou causando 55 mortes, vai virar série

A embarcação construída no Ceará teve a estrutura original alterada pelos proprietários. Na tragédia no Rio de Janeiro, uma das vítimas foi a famosa atriz Yara Amaral

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Barco sendo retirado de dentro do mar
Legenda: “Bateau Mouche IV” naufragou na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, provocando 55 mortes.
Foto: Montagem/Reprodução Memória TV Globo

Era o último dia de 1988 e faltavam poucos minutos para a chegada de 1989 quando o barco “Bateau Mouche IVnaufragou na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, jogando centenas de pessoas ao mar - até hoje não se sabe precisamente quantas - e provocando 55 mortes. A embarcação foi construída no Ceará, cerca de 17 anos antes, e, no decorrer do tempo, teve a estrutura alterada pelos proprietários até culminar na tragédia. Após 35 anos, o caso, que ainda aguarda por Justiça, virou uma série documental. A produção feita pela HBO Max irá mesclar relatos inéditos com dramatização sobre a história. 

O barco foi construído na Indústria Naval do Ceará (Inace), estaleiro com sede em Fortaleza, na década de 1970. A capacidade original era entre 15 e 20 pessoas, mas ao ter a estrutura modificada por proprietários, o Bateau Mouche chegou a transportar entre 140 e 155 pessoas - como no dia da tragédia. A embarcação estava lotada e nunca se soube quantas pessoas oficialmente estavam nela na fatídica noite. 

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A produção audiovisual da HBO Max, anunciada recentemente, está sendo gravada no Rio de Janeiro e é produzida e dirigida por Tatiana Issa e Guto Barra. Mas, ainda não há previsão de estreia. Dentre outros recursos, a série contará com cenas gravadas em um tanque de 40 metros de comprimento, 30 de largura e até 25 de profundidade, desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) usado em simulações de tecnologias de engenharia naval

Quando a produção foi anunciada, a diretora Tatiana declarou nas redes sociais:

“Seguimos com o mesmo olhar respeitoso com as vítimas e sobreviventes, uma pesquisa cuidadosa, baseada nos autos do processo. Uma série difícil e muito dura de fazer, com inúmeros desafios, mas que pretende elucidar tudo que poderia ter sido evitado para que tristes e terríveis tragédias como essa, e todos os descasos jurídicos que se seguiram, nunca mais se repitam”. 
Tatiana Issa
Diretora da série documental sobre o Bateau Mouche IV

O que aconteceu com Bateau Mouche IV?

Na noite do dia 31 de dezembro de 1988, dentre as 55 vítimas da tragédia, estava a atriz Yara Amaral, à época, com 52 anos e no auge da sua carreira no teatro e na televisão. Conforme registrou o Diário do Nordeste, à época, na edição do dia 2 de janeiro de 1989, o barco de luxo seguia em direção à praia de Copacabana, onde os passageiros iriam assistir à queima de fogos de artifício do réveillon. 

Mas, um conjunto de fatores como a agitação das águas, o excesso de passageiros e uma série de outras irregularidades na estrutura da embarcação a fizeram naufragar. O fato aconteceu entre a Ilha de Cotunduba e o Morro da Urca. 

Naquela ocasião, a embarcação chegou a ser interceptada pela Capitania dos Portos, por volta das 22h e, com isso, precisou voltar ao cais para a contagem dos passageiros. No entanto, o barco de 23,90 metros de comprimento e 71 toneladas foi liberado em seguida e partiu em direção à Praia de Copacabana.

Reprodução de página de jornal impresso do Diário do Nordeste
Legenda: Fac-símile de edição do Diário do Nordeste

No livro “Yara Amaral: a operária do teatro” no qual há a narrativa sobre a ocorrência, o escritor Eduardo Rieche indica que o Bateau Mouche IV estava no píer do Restaurante Sol e Mar, onde “cerca de 153 pessoas embarcaram para assistir à tradicional queima de fogos em Copacabana. O barco saiu por volta de 21h15”.  

O objetivo era zarpar da Praia de Botafogo, contornar os morros de Cara de Cão e Pão de Açúcar, ganhar o mar aberto na saída da Baía de Guanabara e chegar à Copacabana. No local, diz o escritor, o barco ficaria no Hotel Le Méridien. Um percurso de cerca de 7 km. Mas, faltando poucos minutos para a meia-noite, o Bateau Mouche IV emborcou próximo ao Costão do Leme. 

Já no registro do Diário do Nordeste, do dia 2 janeiro, consta que o barco tinha cerca de 140 passageiros a bordo. A divergência da quantidade se deve ao fato de os proprietários sequer conseguirem comprovar oficialmente - inclusive durante o processo judicial - quantas pessoas haviam embarcado de fato. 

A edição registra que: “sobreviventes garantiram que várias pessoas pediram ao comandante por diversas vezes que voltasse porque o barco estava balançando muito. A explicação que receberam foi que estava ventando e o mar forte provocava o balanço da embarcação”. 

Cronologia do Bateau Mouche, segundo o livro "Yara Amaral: a operária do teatro"

  • Julho de 1971: a embarcação foi construída pelo estaleiro da Indústria Naval do Ceará e batizada de Kmaloka. Ao longo do tempo,  a embarcação foi mudando de mãos, de dimensão e de classificação;
  • Até 1976 pertenceu ao francês Paul Mattei, que se dedicava à pesquisa pesqueira; 
  • Entre 1976 e 1978 o seu proprietário foi o empresário Alfredo Saad que a transformou em um iate de passeio em alto-mar. Nessa altura, rebatizado de Prelúdio, o barco tinha quatro suítes no deque principal, uma varanda no segunda andar e um espaçoso camarote privativo;
  • Em 1980 a embarcação foi adquirida pelos donos do Bateau Mouche Rio Turismo LTDA. A sociedade era formada pelo português Álvaro Pereira da Costa e os espanhóis Avelino Fernandez Rivera, Faustino Puertas Vidal, Gerado Morgade Senra, Carlos Gambino Morgade, Rámon Rodriguez Crespo, Juán Carlos Rodríguez, Pedro González Méndez e José Ramiro Gandara Fernández;
  • Cerca de 6 meses após a compra, os empresários contrataram o engenheiro Mário Rodriguez Trelles para realizar uma série de reformas no barco; 
  • Em agosto de 1980, o termo de vistoria expedido reclassificou o barco da categoria D (alto mar) 2 (a motor) e J (esporte ou recreio) para G (interior de porto), 2  e B (transporte de passageiros). Aumentando a capacidade de 20 para 153 pessoas, sendo 150 passageiros e 3 tripulantes;
  • Em 1981, devidamente autorizado, o Bateau Mouche IV, passou a fazer viagens diárias na Baía de Guanabara;
  • Em 1988, a embarcação ganhou uma reclassificação passando do serviço e/ou atividade de "transporte de passageiros" para "turismo e diversões". 
  • Dezembro de 1989, o Bateau Mouche IV naufraga;
  • Em 16 de janeiro de 1989 houve o içamento do Bateau Mouche do fundo do mar. 

Origem no Ceará

Fabricado na Inace, no Ceará, o barco, segundo o proprietário da Inace, o empresário Gil Bezerra, informou ao Diário do Nordeste em matéria publicada no dia 4 de janeiro de 1989, tinha capacidade original de transporte de 15 pessoas. 

O nome original, explicou ao Diário, era "KMaloka" e foi projetado “para ser um iate, recebendo a classificação D-2P, que significa embarcação de alto mar, a motor e de  diversão”. Na época, o empresário disse que “ nunca recebeu qualquer comunicação de que o iate fabricado por ele fosse ou tivesse passado por modificações em  sua estrutura”. 

Ao Diário ele informou que “na forma original, o barco, com todos os tanques de óleo lastrados, poderia suportar 150 pessoas, o que equivale a 12 toneladas”, mas explicou que suportar  não significa navegar em mar agitado, com estruturas fora das especificações. 

Reprodução de página de jornal impresso do Diário do Nordeste
Legenda: Fac-símile de edição do Diário do Nordeste

Passados 35 anos da tragédia, em entrevista do Diário do Nordeste, na última sexta-feira , 3 de maio de 2024, Elisa Gradvohl, uma das diretoras da Inace, informou que “o barco fazia muitos anos que havia sido construído. Era um iate para um dono de uma empresa de pesca. Nós construímos o barco para 20 pessoas e teria capacidade para mais 10 se não botasse peso. O barco tem o limite de peso pela linha d’água dele”. 

Como era o barco?

Originalmente, diz a edição do Diário de 4 de janeiro de 1989, “o barco tinha 23,90 metros de comprimento, 5,90 de boca, além de três suítes — cada uma para duas pessoas — e acomodações para a tripulação, totalizando 15 pessoas. Era todo construído em madeira de lei e custou, à época, 70 mil cruzeiros. 

Depois que se transformou em Bateau Mouche, a embarcação recebeu a classificação G-2P, de turismo e diversão, com a proibição de navegar em alto mar. 

O primeiro proprietário do barco, o francês naturalizado brasileiro Paul Mattei, na época da tragédia, afirmou ao Diário que “o barco com a sua estrutura original teria capacidade de suportar até 70 toneladas, equivalente a mil pessoas. Apesar de ser projetado para ser um iate de alto mar e destinado a transportar 15 pessoas, recebendo inclusive a classificação D-2P, ele afirma que chegou a colocar no barco 100 pessoas”. 

imagem de um barco atracado no Rio de Janeiro
Legenda: Bateau Mouche IV no Rio de Janeiro
Foto: Reprodução/ Memória TV Globo

Mas, como já apontado, o barco passou por inúmeras transformações. Na década de 1980, quando foi propriedade de um grupo de empresários europeus (composto quase majoritariamente por espanhois), o engenheiro Mário Rodriguez Trelles foi contratado para realizar uma série de reformas no barco. A capacidade, naquele momento, aumentou para 153 pessoas, sendo 150 passageiros e 3 tripulantes;

Na época, Elisa Gradvohl, disse à imprensa nacional que já havia construído outras 1.500 embarcações e que o Bateau Mouche IV estava velho, pois a média de idade de um barco como aquela seria de, no máximo, 15 anos. Anos depois, em julho de 2004, quando a TV Globo reconstitui o caso no Programa Linha Direta, Elisa declarou: "na realidade eu não vi o barco que eu construí naufragar porque era totalmente diferente do barco que foi a pique". 

Em entrevista ao Diário nesta sexta, Elisa recordou que, na época, no dia seguinte à tragédia, recebeu uma ligação da Capitania dos Portos do Rio de Janeiro para que entregasse o documento de construção do barco. “Eu peguei e enviei. O documento foi suficiente para comprovar o que havíamos dito”, completa. 

“Toda e qualquer embarcação é feito um projeto que é analisado por um engenheiro naval, ele aprova, assina e esse projeto vai para a diretoria de Portos e Costa que é quem aprova o projeto. Quem vai construir o barco tem que entender para não fazer besteira. Não depende só do engenheiro. O barco tem que ter estabilidade permanente. Se vai andar mais gente, tem que ter a distribuição correta em todos os lados”.  
Elisa Gradvohl
Diretora da Inace

Cearense morreu na tragédia

A tragédia do Bateau Mouche também matou um cearense. Na edição do dia 3 janeiro de 1989, o Diário do Nordeste registrou que Antonio Raimundo de Mesquita, de 35 anos, natural da cidade cearense de Santa Quitéria, foi uma das vítimas. Antonio, diz o texto, “era garçom de um restaurante carioca, de propriedade da mesma firma do barco, e naquele dia foi escalado para servir a bordo”.
 
O nome de Antonio constava como o primeiro da lista de vítimas. O corpo de Antônio passou pelo Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro e foi sepultado na cidade carioca. Conforme o registro do Diário, “ele residia há cerca de 16 anos no Rio de Janeiro, para onde foi com o intuito de conseguir trabalho para garantir sua sobrevivência”.

Na época, as informações foram relatadas pelo pai da vítima, morador de Santa Quitéria, Antônio Rodrigues de Mesquita. 

Resultado das investigações

Na investigação da tragédia do Bateau Mouche dois laudos – um da Marinha e outro da Polícia Civil – evidenciam que a embarcação estava com excesso de passageiros e uma série de outras irregularidades, como furos no casco, escotilhas abertas e coletes salva-vidas fora do prazo de validade.

A Comissão de perícia técnica informou, à época, que as alterações promovidas no barco foram executadas de forma considerada indevida.

Na mudança, conforme consta no livro "Yara Amaral: a operária do teatro", além das divisórias estanques de madeira, retiradas da parte interior do barco, “também foram transferidas duas caixas d'água metálicas do porão para o convés superior, cada uma com capacidade para 866 litros e o acréscimo de uma terraço suplementar, feito com uma laje de concreto de aproximadamente quatro toneladas”. Isso teria comprometido a estabilidade do barco.

No processo, os três sócios majoritários da Bateau Mouche – os espanhóis Faustino Puertas Vidal e Avelino Rivera e o português Álvaro Pereira da Costa – foram condenados a quatro anos de prisão em regime semiaberto por homicídio culposo, sonegação fiscal e formação de quadrilha. Álvaro Pereira da Costa e Faustino Vidal ficaram poucos meses detidos e após uma série de ocorrências e reviravoltas judiciais, os três fugiram para a Europa, em 1994. O caso segue impune. 

 

 

 

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